29 May 2009

SALVE VÓ ANNA!

por Ana Veet Maya
Vó Anna.
Mulher guerreira, forte, silenciosa, enigmática.
Cresci vendo vó Anna sorrir. Uma menina. Sorria por tudo.
Às vezes, gargalhava tanto que até chorava e fazia xixi na calça.
Fez-se curandeira na vida.
Atendia a todos da vizinhança aplicando injeções, benzendo cachumba, quebranto, erisipela...
-Ó, Ana, tens quebranto? Tira-te Deus e o Espírito Santo. Dois te puseram, três te tirarão, São Pedro, São Paulo e o apóstolo João. Em louvor de São Silvestre, tudo o que eu fizer pra Ana preste...
E vó Ana, ia rezando e fazendo o sinal da cruz na nossa testa.
Ao final das rezas, ela começava a bocejar muito, muito. Seus olhos se enchiam de lágrimas, ela ficava com o rosto inchado, vermelho.
Bocejava até não mais poder.
Depois, passava a mão pela boca como quem retirava algo nocivo, como se estivesse limpando e jogava fora, rumo ao nada, como se de fato tivesse algo em suas mãos.
Aí, os bocejos paravam.
A gente se sentia melhor. E ela dizia :
- Ai, tininha, precisas rezar ! Você estava com muito quebranto!
Reza pro anjo da guarda.
E começávamos juntas:
- Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina, sempre me vele, me guarde, ilumine, proteja, amém.
E todos saíamos de perto da vó Anna mais felizes e com o coração aquecido.
Nas tardes de chuva e trovoada, ela pedia que corrêssemos e escondêssemos tesouras e metais.
Cobríamos também os espelhos e ficávamos quietinhos e juntos, vendo a chuva cair até passar.
Os relâmpagos e trovoadas se sucediam.
Tínhamos muito medo.
Vó Anna ia até o fogão e fazia bolinhos de chuva, sempre salpicados com muito açúcar e canela.
Não havia medo que resistisse aos bolinhos de vó Anna...
Ela sempre acordava muito cedo.
Rotina muito simples.
Pedia que alguém comprasse sua bengala de pão enquanto ela passava no saco o “ negrinho” e o cheiro de seu café espalhava-s convidativamente pela vizinhança.
Sempre que eu sentia o cheiro do café de vó Anna, sorria feliz e uma paz muito grande se instalava dentro de mim.
Já sabia que tudo estava bem, o dia inteiro seria bom.
E nada mais me preocupava.
Hoje eu sei que vó Anna me ensinou a meditar e a viver o aqui-agora.
Quando o pão chegava, muitas vezes ainda era escuro, ela se sentava à mesa, cortava metade da bengala, dividia ao meio e passava margarina. Enchia uma terrina redonda inteirinha de café e, lentamente, num ritual meditativo, começava a mergulhar o pão no café puro, comendo devagar, saboreando prazerosamente e sorrindo.
Vó Anna tinha um chá para cada doença.
Suas ervas eram plantadas espalhadas pelo jardim : melissa, capim santo, alecrim, arruda, guiné, espada de São Jorge, hortelã, mirra, malva, erva de Santa Maria e quebra-pedra, pata-de-vaca...
E plantava flores, rosas, sim, muitas rosas e azáleas.
Ela adorava a terra. Adorava plantar.
Vestia sempre roupas bem largas que não marcavam sua silhueta gorda.
No ventre, sempre um avental de cozinha, como se estivesse eternamente pronta para ir ao fogão e fazer seus quitutes.
Lavava as roupas lentamente. Quarava.
Dedicava um tempo especial para escovar os ternos pretos de meu avô Zeca.
Diariamente pendurava os ternos para apanhar ar e sol.
Escovava tudo com carinho, como se estivesse alisando e escovando as costas do meu avô.
Muitas vezes esses rituais de vó Anna eram acompanhados pelas músicas que ela cantava ou pelo barbear de vovô Zeca, interpretando Nelson Gonçalves e Orlando Silva.
Nunca vi vó Anna se queixar de nada.
Nunca.
Ela me dizia :
- Tata, reza, filha. Não chora. Depois do escuro da meia-noite, sempre chega um novo dia.
E ela me ensinou a acreditar nisso porque o dia sempre chegava !
E a lágrima era sempre mais passageira que o sorriso e a paz.
Vó Anna ensinava que com certeza, tudo sempre ficaria bem.
Bastava que assim pensássemos.
Mas ela explicava que precisavamos pensar e fazer.
- Tata, escuta, Deus fala assim , me ajuda que Eu te ajudarei. Se você ficar só se lastimando, nada vai acontecer. Você precisa trabalhar e confiar.
A fórmula de tenacidade de vó Anna ficou encravada na minha formação.
Bastava que não tivéssemos preguiça, que trabalhássemos sempre e mantivéssemos nossa saúde, nosso maior bem.
Foi assim que vó Anna me ensinou a ter fé e nunca desistir.
Teve aquela vez que vi vó Anna desmaiar.
Seu netinho morrera subitamente do coração.
Oscarzinho, menino travesso, inteligente, alma sensível. Um anjinho no céu.
Foi um susto muito grande pra vó Anna.
Nesse dia ela chorou.
Todos nós choramos.
E eu fiquei triste e aprendi que a tristeza também fazia parte da vida.
Mas no dia seguinte, vó Anna levantou e tomou seu café.
Saiu para o quintal.
Olhou o céu.
Parecia rezar.
Suspirou e foi regar as plantas.
E eu aprendi que mesmo com a tristeza, a vida seguia sempre em frente.
E embora triste, estudei, limpei a casa.
Eu sabia que a vida continuaria.
Aprendi com vó Anna que dentro de nós há espaço para todas as emoções.
O corredor de nossa casa era comprido.
Vó Anna gostava de ir até o portão, olhava a rua, varria a calçada, cumprimentava os vizinhos.
Sempre pela manhã.
Começava então a fazer o almoço, feijão, arroz, murinhana, batata frita.
Isso eu nunca aprendi com vó Anna... Minhas batatas fritas até hoje ficam murchas, horrorosas.
As dela eram sempre bonitas, saborosas, sequinhas, deliciosas.
Após o almoço, vó Anna se sentava com seu crochet.
A televisão era ligada nesse momento para os programas femininos da tarde.
Nunca entendi direito como vó Anna conseguia fazer tanto crochet, ver a televisão, rir do que via e ouvia, conversar comigo e ainda me aconselhar...
Enquanto suas mãos e dedos ágeis freneticamente faziam crochet (que minha mãe depois vendia para ajudar no orçamento), eu ficava deitadinha com a cabeça em seu colo ou simplesmente apoiada num travesseiro encostado no seu corpo.
E as tardes passavam gostosas, estimulantes e sempre protegidas.
A primeira infância é mesmo vital para todos nós.
Vó Anna foi um dos grandes pilares que sustentou a minha formação.
No café da tarde, às vezes vó Anna preparava chocolate...
Ninguém até hoje conseguiu fazer o chocolate da vó Anna.
O dela tinha sempre sabor de alegria.
Ela jantava muito cedo.
–À noite não se pode comer, filha!
Após a janta, as novelas pra ela e para mim.
O carteado e o dominó para meu avô.
Vô Zeca era campeão e trazia muitos troféus para casa.
Enquanto eu era a companheirinha de vovó nessas noites de carteado, eu nem percebia o quanto de tolerância, amor e desapego, existia nessa sábia mulher que me ensinava a amar.
E ela amava.
E seu homem era livre para sair, jogar, sabe-se mais o que fazia vô Zeca naquelas noites sem fim...
Nunca vi vó Anna brigando com vô Zeca.
Nunca vi vô Zeca brigando com vó Anna.
Ainda na década de 50, quase virada para 60, vó Anna tinha a ousadia de viver com um homem dez anos mais jovem que ela!
Ela enfrentou todos os preconceitos da época, mas sempre cuidou bem do seu amor.
Vó Anna, uma mulher de vanguarda que de fato marcou a vida de todos que conviveram com ela.
Um pouco antes de ir dormir, havia o ritual da maçã.
Ela parava e guardava seu crochet.
Pegava uma maçã bem doce e vermelha.
Descascava lentamente.
Seus dentes não lhe permitiam mastigar as cascas.
Ela conseguia descascar a maçã inteirinha sem quebrar a casa, para depois mastigar lentamente, pedacinho por pedacinho.
Claro que ela queria me dar pedaços da maçã.
Mas eu não queria.
O óbvio nunca me seduziu.
Eu amava era comer as cascas!
Lindas, vermelhas, fresquinhas, saborosas.
Era muito estimulante aquilo tudo.
Só hoje consigo entender o quanto vó Anna meditava!
Cada ato, sempre consciente, sempre uma grande meditação.
Quando o último programa da noite que eu podia assistir chegava ao fim (porque criança naquele tempo tinha horário para ir para a cama), eu chorava, dizia, não, vovó, só mais um pouquinho!
Minha mãe me pegava carinhosamente, me levava para a cama, meu pai sempre junto, ia me dar o beijinho de boa noite.
Mas eu chorava.
Queria dar mais um beijinho na minha avozinha Anna.
E eles deixavam... E eu ia...
–Tchau, vó ! Até amanhã!
E ela me beijava outra vez, abençoava e sorria.
Aos sábados, nossa, que dia especial !
Era o maior dia de festa para mim e todas as crianças da família.
Vó Anna tinha três irmãs e três irmãos. Tia Elvira, Tia Emília, Tia Cema, Tio Maneco, Tio Artur e Tio Quim.
Todos vinham visitá-la aos sábados, ela, a mais velha, a matriarca da família.
Cada um trazia a guloseima que fizera.
Vó Anna fazia bolo de laranja e preparava o café ou o chocolate.
Tia Berta, casada com tio Maneco, trazia bolo de chocolate e amendoim doce torrado.
Saudade da tia Berta!
E saudade da Leila, da Lucimara, primas queridas filhas de Tia Cema.
A Leila enrolava nosso cabelo, fazia toca para alisar depois, ensinava a gente como cuidar das unhas.
A Lucimara era bem pequena e só queria mamar.
A Ruth, a filha da tia Elvira, marcava com suas artes e novidades. Ruth, da minha infância até agora, sempre uma alma irmã e motivadora. Foi ela que me apresentou as artes e a bioenergética.
E Jurema, a filha de tia Emília, nos falava do censo e concursos públicos. Sempre estudiosa ela.
Ah ! Ela também falava de bailes e namoros. Muitos namoros...
Uma grande comemoração em família.
Todos os sábados! Sempre festa.
Tinha um momento da tarde que duas tias, minha mãe e a vó Anna sempre encabeçando, se trancavam na cozinha e se sentavam em torno de uma mesa com uma toalha branca.
Eu não entendia nada daquilo que estava acontecendo.
Elas diziam:
- Meninos, não façam barulho. Agora vamos rezar.
E a porta da cozinha se trancava.
Nós, crianças, ficávamos do lado de fora, sentados calados, olhando uns para os outros, em silêncio, em prece, em oração e profundo respeito.
Éramos crianças sim, mas já tínhamos a noção dos limites.
Era diferente tudo aquilo.
Inusitado.
Algo que era bom, sabia que era bom.
Mas nós tinhamos que silenciar para entender.
E sentir.
Elas nos diziam que rezavam e conversavam com os espíritos.
Diziam que era uma reunião de mesa branca, para rezar e abençoar as pessoas.
E nós, os pequenos, não podíamos participar.
Só quando crescêssemos.
Foi portanto uma grande emoção crescer...
Nunca esquecerei a primeira vez que pude participar da mesa branca Kardecista que vó Anna conduzia, sempre como médium de ponta.
Tia Emília tinha o dom da mediunidade que materializa.
Tia Cema era médium ouvinte.
Minha mãe doutrinava os espíritos que ainda não tinham enxergado a luz.
Aliás, minha mãe hoje, aos sessenta e oito anos, ainda faz isso, tanto com os vivos, como com os que estão em outras dimensões.
Minha mãe, uma eterna doutrinadora!
Vó Anna comandava e segurava as pontas...
Cabia a ela e seus espíritos protetores, amparar espíritos que necessitassem de luz. E ser enérgica quando precisasse.
Quando vó Anna falava para todo mundo se concentrar e ficar rezando sem parar o Pai Nosso, meu Deus! A gente sabia que a coisa estava séria !
Cada um com seu papel.
Assim fui aprendendo que todos nós temos habilidades.
Que todos nós temos poder.
Mas que precisamos acreditar para ver.
Talvez tenha sido assim que aprendi a respeitar e a abençoar a luz.
E a respeitar e entender a importância das sombras.
Vó Anna sempre ensinou a importância de tudo.
- Filha, você não precisa seguir nunca nada. Siga sempre seu coração. Quando não puder fazer o bem, nunca faça o mal. Isso já é uma grande coisa. E você também não precisa ter religião nenhuma se não quiser. Não precisa participar de nenhum ritual em nenhuma igreja ou templo. Basta você ser boa. E sempre fazer o bem. Em qualquer lugar. A qualquer momento.
- E filha, quem é bom, não precisa mostrar. Seja boa, apenas. Trabalhe!
Hoje percebo que vó Anna não era espírita.
Ela não era católica.
E não era pagã.
Ela era a vó Anna, uma mulher plena.
Um ser humano completo, feliz e apaixonado.
Uma mulher forte que se permitia ser frágil.
Uma mulher simples e feliz.
Alguém que sempre só soube amar e doar.
Vó, eu acredito sim, a vida é eterna!
Onde estiver, escuta, tua neta te saúda!
Salve, vó Anna!

19 May 2009

AS SOMBRAS

por Ana Veet Maya

A luz do sol me cega
Não posso com tanta luz.
A escuridão me acalma.
As sombras me fazem ver
Sempre além.
E a lágrima que escorre
por prazer ou por saber
não molha o travesseiro
mas limpa toda a cama.
A respiração é suave
quando não vejo a luz.
O Sol é muito forte
e faz-me enxergar as fraquezas.
Eu quero o silêncio
das sombras que perdoam.

anaveetmaya